A inserção da lei das cotas para o ensino superior no Brasil não foi um processo fácil e sem barreiras. Na verdade, não foi um processo, continua sendo um processo. O aparato legal das cotas é uma estratégia de democratização dos espaços pouco diversos da sociedade brasileira.
Criar cotas significa, na prática, dedicar um espaço exclusivamente a um grupo prioritário que tem o direito de se inserir naquele espaço e consumir aquele recurso antes de outras pessoas.
Entre esses espaços estão as instituições de educação superior nacionais, um segmento ainda muito pouco diverso. Além de a população branca ter muito mais acesso à educação do que a população negra e indígena, existem outros fatores que impedem o acesso de pessoas ao ensino superior.
Um deles é o fator financeiro: as instituições públicas gratuitas têm muita concorrência por vagas; as privadas, além da concorrência de vestibulares, têm o fator financeiro com o custo alto das mensalidades. Grande parte da população brasileira não consegue se inserir nesses espaços.
Já em relação aos vestibulares e ao Enem, uma das questões levantadas por especialistas é que, com a desigualdade do acesso ao ensino básico de qualidade no país, o sucesso em provas de classificação e a entrada no ensino superior também não são igualitários.
Outro ponto relevante é a inacessibilidade física e social do ensino superior. A lei das cotas para o ensino superior, além das questões raciais e socioeconômicas, visa incluir pessoas com deficiências. Historicamente, elas foram mantidas de fora do ambiente educacional em todos os segmentos.
As cotas, portanto – sejam elas cotas sociais ou raciais – são um contraponto à desigualdade social que ainda atinge o Brasil e seu sistema educacional. O objetivo do projeto, já em vigor desde 2012, é criar proporções mais favoráveis e presença mais igualitária de grupos de minorias sociais nessas instituições.
O incentivo visa diminuir a distância entre os setores da sociedade, criar oportunidades no mercado de trabalho e na pesquisa e realizar uma reparação histórica da falta de oportunidade que as minorias sociais tiveram no acesso à educação em gerações anteriores.
Qual é a lei que determina as cotas no ensino superior?
A lei das cotas para o ensino superior determinou a reserva de vagas em instituições de ensino públicas para populações consideradas sub-representadas no acesso à educação.
Sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff em 2012, a Lei 12.711 determina que:
“As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.”
Dessas vagas, 50% devem ser destinadas a alunos cujas famílias tenham renda de até 1,5 salários mínimos por pessoa.
Esses critérios são válidos para faculdades, universidades, institutos de tecnologia e centros universitários federais.
Também é importante atentar para critérios sociais e raciais da lei. O Art. 3º determina que as vagas das cotas “serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência.”
A proporção é determinada pela população desses grupos no estado em que a instituição está localizada. Ou seja, se em determinado estado a IES oferece 100 vagas, 50 são para cotas. A partir disso, elas devem ser preenchidas de acordo com a população local: se metade da população é negra, 25 vagas serão então destinadas prioritariamente a esse grupo de alunos.
Qual é o objetivo educacional das cotas?
O objetivo da implementação da Lei das cotas para ensino superior é tornar as instituições de ensino federais mais receptivas a diferentes grupos de candidatos. Historicamente o acesso a universidades e institutos foi majoritariamente destinado a pessoas brancas, oriundas de instituições de ensino básico privadas e que não são de baixa renda.
Hoje, estima-se que uma pessoa branca de centros urbanos e maior poder aquisitivo pode ter até quatro anos de estudos a mais do que uma pessoa negra, indígena ou moradora de zona rural.
A principal meta é fazer com que pessoas que não tinham acesso a essa forma de educação profissional e acadêmica possam participar dos espaços das universidades e outras instituições de educação superior (IES) federais e consigam, a partir disso, se inserir tanto na pesquisa e inovação científica quanto no mercado de trabalho.
Dessa forma, teoricamente, aos poucos o processo vai tornando os espaços menos elitizados e ainda contribui para mais perspectivas futuras para grupos minoritários. A ampliação da formação de pessoas de minorias sociais é uma via de mão dupla que retorna o esforço ao ensino superior. Com inovação científica e experiência profissional, essas pessoas beneficiárias da lei das cotas para o ensino superior podem contribuir para a educação de futuros estudantes.
Qual a função das ações afirmativas na sociedade?
De acordo com o Censo Nacional da Educação, realizado anualmente pelo INEP, a desigualdade social e econômica ainda é muito intensa dentro dos ambientes de educação principalmente no segmento superior.
Em 2019 foram feitas mais de um milhão e 300 mil matrículas em instituições de educação superior (IES) brasileiras. Dessas matrículas, apenas cerca de 48 mil foram realizadas por estudantes com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento. Ou seja, 0,56% do total. Para contexto, a população com deficiência no Brasil atinge a taxa de 24% da população total, sendo que a maioria das pessoas possui deficiência física, como baixa visão ou mobilidade reduzida.
A inclusão de pessoas com deficiência na lei das cotas para o ensino superior em 2016 ocorreu como complemento à lei que visava atingir pessoas negras, pardas, indígenas e oriundas do sistema público de ensino básico.
Outro ponto importante é que essa lei visa contemplar a ampliação do ensino superior em si: hoje, apenas 21,3% da população adulta brasileira entre 25 e 34 anos de idade tem diploma do ensino superior. Isso se deve justamente à dificuldade de ingressar no sistema educacional e na formação profissional, mesmo após a conclusão do ensino médio.
Esse índice é muito baixo para padrões internacionais, colocando o Brasil como um país que não investe o suficiente na formação superior. Na comparação com a Argentina, por exemplo, a taxa de diploma superior entre os 25 e 34 anos é de 40%.
Que instituições devem aderir à lei de cotas?
As IES que devem aderir à lei das cotas para o ensino superior são as instituições do âmbito federal, ou seja: universidades, faculdades, centros de formação, centros universitários, institutos de tecnologia e pesquisa de administração pública. As instituições estaduais não são obrigadas a aderir, mas muitas optam por programas de ações afirmativas mesmo assim.
É necessário seguir as diretrizes do Ministério da Educação: pessoas de baixa renda, pessoas negras, indígenas e alunos que cursaram o ensino básico em instituições municipais e estaduais.
E as IES privadas?
No caso das instituições de ensino superior privadas, a lei das cotas não é aplicada. Porém existem incentivos do Governo Federal para que o acesso a essas instituições seja ampliado. Em primeiro lugar existe o ProUni, que reserva vagas com bolsas integrais e parciais para alunos de baixa renda e minorias sociais que queiram cursar universidades privadas.
Além disso, existe o FIES, programa de financiamento estudantil sem taxa de juros que permite que muitos alunos por todo o Brasil financiem seus estudos sem se preocupar com altas dívidas no futuro.
Quem é contemplado pelas cotas na universidade?
É importante saber como funciona a lei das cotas para o ensino superior. Ela é baseada na autodeclaração (no caso de minorias raciais) e na comprovação de baixa renda durante a matrícula no ensino superior.
Como foi feito o debate social em torno da lei das cotas?
A sanção da lei das cotas para o ensino superior gerou um grande debate dentro da sociedade sobre o melhor método de realizar ações afirmativas no setor educacional. Houve uma controvérsia em torno das cotas serem ou não a melhor forma de garantir o maior acesso de pessoas de baixa renda e minorias a instituições de ensino.
Também existia uma preocupação em torno das notas de corte e do desempenho em provas de vestibular e no Enem. Críticas à lei incluíam preocupações com o baixo aproveitamento desses alunos que chegariam, a princípio, no ensino superior sem a bagagem educacional dos segmentos anteriores.
De acordo com uma pesquisa realizada pela UERJ, a verdade é que as médias não tiveram uma variação tão grande. A diferença entre as notas de corte na modalidade ampla concorrência e na modalidade cotistas fica em cerca de 3% no SiSU.
Já durante o curso, a maior parte das IES relata igual ou superior desempenho de alunos cotistas. A UFF, por exemplo, mostra que os alunos oriundos de escolas públicas tiram notas melhores e têm mais empregabilidade após a conclusão do curso.
Qual é o efeito da lei das cotas na sociedade brasileira?
Ainda que as taxas de presença no ensino superior sejam baixas por todo o Brasil, é importante reforçar os avanços positivos que as cotas deram para grupos marginalizados.
O IBGE divulgou, pelo informe Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, que em 2018 a presença de pessoas pretas e pardas no ensino superior era de mais da metade das vagas pela primeira vez na história.
Ainda que esses grupos representem 55% da população brasileira, foi só após anos de ações afirmativas que os índices se tornaram mais favoráveis em relação ao acesso ao ensino.
Na USP, em 2021, pela primeira vez os alunos que cursaram Ensino Médio em escolas públicas viraram maioria: a taxa foi de 51%. A reserva de vagas a esse público teve início em 2017, quando foi aprovada pelo Conselho Universitário, mas foi só em 2021 que o cenário passou a refletir as mudanças.
Educação é para todos
Todo o contexto de anos de trabalho de especialistas em educação superior em torno da lei das cotas e de ações afirmativas continua sendo um processo em andamento para a democratização do ensino.
É muito comum que as IES sejam vistas como inacessíveis para grande parte da população. No entanto, a formação superior abre muitas portas: além de oportunidades melhores de empregos e cargos, também fornece uma difusão de conhecimento que agrega bagagem cultural ao aluno.
O espaço de aprendizado também é uma vitória: tendo acesso a debates e informações, os alunos ganham muito mais que diplomas, mas referências que acabam fazendo toda a diferença em suas trajetórias pessoais e profissionais.
A instituição é melhor com mais experiências
Em contrapartida, as instituições de ensino que valorizam diversidade só têm a ganhar: abrindo portas e criando vias de acesso para populações marginalizadas, as mantenedoras encontram novos alunos e pesquisadores que podem trazer, com suas vivências, diferentes perspectivas e inovações para um espaço tradicional de ensino.
Essas pessoas também se tornam exemplos e referência em suas áreas e inspiração para futuros estudantes.
O retorno do investimento para a sociedade
Unir a qualidade educacional a novas visões é um investimento no futuro da sociedade. Além de chegar ao mundo acadêmico ou ao mercado de trabalho com uma cultura diversa e expandida, os estudantes podem levar o conhecimento agregado a outros setores da sociedade.
Isso contribui para a qualificação profissional e também para a difusão de conhecimento, formal e informal, que complementa o ensino, faz parte de debates, pesquisas e se torna público.
Dessa forma, a IES retorna para a sociedade o que ela cria, se tornando um pilar e uma referência de conteúdo, tradição e inovação para o avanço da população brasileira.
Já que você se interessou por nosso conteúdo sobre lei das cotas para o ensino superior, confira também o artigo sobre tecnologias assistivas que ajudam na inclusão no ensino superior e na promoção da acessibilidade!